O sopro
“Esta é a
madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da
noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo.”
Sophia de Mello Breyner
Andresen. O nome das coisas. 1977.
Começamos, lentamente, a
passar do fatalismo da idade biológica (“a idade não perdoa”) para o otimismo
da idade psicológica (“o importante não é dar anos à vida, mas vida aos anos”).
Esta inversão de sentimentos e perceções só é possível numa sociedade como a
atual, mediatizada até à náusea, em que a mágoa encontra antídotos (reais ou
imaginários) nas opiniões diversas a que a maior parte de nós tem acesso, ou
encontra sem particular dificuldade.
Como não são já populares os
estados de profunda melancolia - que afetaram as damas do século XIX e os
adolescentes do início dos anos 80 que, como eu, se viciaram na batida dos Joy Division e lhe decoraram, com
precisão de relojoeiro, letras e pausas - é hoje usual agarrarmo-nos a
aforismos que negam o que há anos atrás pensávamos do que seria ter 40 anos, 50
anos, 60 anos.
É assim muito comum ouvir-se
ou ler-se que “os 40 anos são os novos 30”, ou que os “os 50 anos são os novos
40”, ou mais entusiasticamente que “os 50 anos são os novos 30”. A aritmética é
arriscada, mas o resultado psicológico é consolador face ao “peso da idade”.
Na verdade – e creio não ser
uma deformação do tempo – fiquei habituado, quando era jovem, a ver os senhores
de 40 anos sempre impecáveis, de fato e gravata, com contida mas existente
bonomia, e aos 50 anos, continuavam impecáveis, só que perdiam a bonomia para
ganhar um chapéu. Criavam connosco, uns e outros, uma profilática distância que
nós – os jovens – respeitávamos sem particular azedume, porque era assim que as
coisas eram e era assim que o tempo trabalhava as pessoas. A idade e a
gravidade caminhavam juntas.
Agora que tenho cinquenta não
estou assim tão assustado como pensava estar quando ainda não tinha cinquenta.
E era capaz de ir mais longe: “os cinquenta são os novos 20!”.
Aos cinquenta não estamos
particularmente preocupados com aquilo que de nós pensam. Tal como aos vinte.
Aos cinquenta tem-se já estatuto para menorizar a opinião dos outros sobre nós,
enquanto aos vinte ninguém tem estatuto para ter opinião sobre nós. Aos
cinquenta perdemos a pachorra para educar os nossos filhos (o trabalho está
feito, bem ou mal, está feito), e eles, com vinte anos, agradecem essa nossa
sabedoria pois não têm igualmente pachorra para serem educados. O caminho está
livre, finalmente, para eles e para nós, já sem fraldas, biberões, termómetros,
festas de Natal, dias da árvore, da água e da doninha, avaliações qualitativas,
e aquela inapelável fragilidade que têm quando são pequenos e que nos prende a
eles como âncoras.
Aos trinta e aos quarenta,
esse longo deserto de responsabilidades e afirmações, tinha vontade de me
divertir como me divertia aos vinte, mas já não o sabia fazer com a mesma
irresponsabilidade dos vinte, o que tornava o divertimento contido e por isso paradoxal.
Recuperei há um par de anos essa mesma irresponsabilidade. Aos cinquenta
pode-se ser irresponsável que ninguém vai pensar que o estamos a ser e isso dá
um gozo tremendo. Até já danço novamente! quase um quarto de século depois de
me ter (irresponsavelmente) atrevido a fazê-lo ... e nunca estive tão atento,
como hoje, às novas bandas tal como o fazia aos vinte.
E se o colesterol e os
triglicerídeos, as dores nas costas e a escassez hormonal, nos aparecerem, a
espaços, cutucando o nosso braço, esperemos com otimismo que eles passem e se
cansem como estas nuvens que vão, mais tarde ou mais cedo, acabar por deixar o
sol em paz.
And now for something
completely different: temos que fazer qualquer coisa sobre as luzinhas acesas nas varandas
e janelas do nosso centro histórico, permanentemente. Andámos nós durante anos
a preservar este belíssimo espaço a que chamamos a nossa cidade para agora, a
propósito de um simpático efeito de Natal, a caricaturarmos com uma profusão de
luzinhas que dá à inquestionável beleza arquitectónica do nosso espaço comum um
incomodativo toque pimba. Não pode ser. Apaguem-se essas velas num só sopro ...
e o mais rapidamente possível.
Publicado in O Comércio de Guimarães (28.05.14)
Fotos (a preto e branco) de Irving Penn (página)
Fotos a cores de Julianne Moore: trabalho do fotógrafo Peter Lindbergh sobre motivos de pinturas (página)
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