Talvez cardiologista?
“Penso que
este método, de uma pessoa se transformar num trapo sem vida, terá significado
para mim ao longo da vida. A arte de ser pisado conservando a dignidade.”
Tomas Tranströmer. As minhas lembranças observam-me. 1993.
A alguns dias de uma eleição
importante interessar-me-á, nesta crónica, não particularmente quem se propõe
ser eleito, mas fundamentalmente quem os elege: o chamado povo.
O povo não gosta dos
políticos. O povo vota sempre contrafeito. Às vezes dá a sensação que o povo só
vota pelo desprazer de mais tarde afirmar: nunca mais voto nele. O povo é
assim. Não reconhece aos políticos a sua tarefa. E pior: inveja-os.
Estupidamente.
Ainda bem que os políticos
nunca ficam zangados com o povo. Há claramente marcada, na genética de um
político, a tara do masoquismo. Mas lá andam eles, os políticos, sempre por
ali, perto do povo, à espera de um beijinho ou de um abraço que fique bem na
televisão, na fotografia. Mas o que acaba por ser realmente notícia é o insulto
ou a desfeita que o popular sempre solícito estende à passagem do político.
O político aceita, contrafeito
é certo mas aceita, o rótulo de filho da mãe. Vem no pacote do kit do político. E é uma sorte que assim
seja. O povo acha que os políticos são uns sortudos e não os desgraçados que
efetivamente são. Não há dinheiro nem reconhecimento público que pague tanta
maçada. O político não tem vida privada e o seu passado e presente são
escalpelizados até à exaustão. Tu sabes que o fulaninho, no infantário, roubou
um iogurte na cantina? O político é um réu em permanência.
Enquanto o popular é
divertido quando bebe uns copos, o político é um inveterado alcoólico. O
político levanta-se da cama – dormiu mal pois no seu partido estão, aí sim, a
“fazer-lhe a cama” – e logo encontra à porta uma manifestação dos apanhadores
de amêijoa indignados pela portaria assinada.
O povo, aliás, está sempre
indignado. A característica do popular quando se lhe põe um microfone à frente
é só uma: indignação. Minha senhora estou indignado pelo que estão a fazer ao
meu subsídio de refeição, como vê estou magríssimo. Caro jornalista estou há
trezentas horas à espera de um exame médico, isto é uma vergonha. O popular,
como o político, sabe perfeitamente o que não vende. Nunca esperaríamos que um
popular dissesse (ou que o jornalista se enternecesse com) estou
satisfeitíssimo com o atendimento médico e com a conta do hospital, veja lá que
me fizeram uma operação que custou ao estado 3.345€ e vou pagar apenas 14,35€.
O político e o popular complementam-se assim, em sociedades civilizadas como a
nossa, muito bem. O político é masoquista mas dá ares de sádico, o popular é
sádico mas queixa-se da violência masoquista do político.
Em bom rigor o povo não
existe. O que existe é um conjunto de populares. Não existe um sentimento de
povo, mas a soma infinita de interesses particulares. Quando o político vai ao
mercado na reta final das campanhas ele nunca ouve propriamente o povo, ele
ouve os populares. Ele ouve o problema particular de saneamento, o muro que
está a cair e que pressuroso, logo ali, se propõe a resolver.
O político (não filho da mãe)
ilude-se que o povo o vai conservar no coração ou numa lápide anos mais tarde
numa rua anódina da terrinha onde nasceu. Contudo o coração do popular é seletivo
e só se abre a quem tiver poder para lhe fazer o jeitinho de que ele tanto
precisa. Se ele não tem poder já não interessa, vai para a reciclagem. Mas ainda
assim, magnânimo, dar-lhe-á anos mais tarde o nome da rua que o político tanto
ambicionou. E um dia ao morador da Rua Joaquim António um outro popular o vai
interpelar pelo significado da toponímia. O morador irá dizer: sei lá ó Pires
quem é esse gajo, nem me interessa, talvez cardiologista, quem sabe?
As coisas são efetivamente
assim. Mas não convém falar muito nisso. Não vão os políticos (mesmo aqueles que
enfaticamente dizem que o não são) um dia faltarem-nos como os apanhadores de
fruta, ou as costureiras, ou os picheleiros. Isso sim … seria uma tragédia.
Publicado in O Comércio de Guimarães (30.09.15)
Fotografias de NICK VEASEY (X-RAY)
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