A vida é uma coisa estranha
““Quem suportaria tais fardos (...) se não fosse o receio de qualquer coisa após a morte, dessa região não descoberta e de cuja fronteira nenhum viajante regressa (...)”.”
William Shakespeare. Hamlet. 1600.
Já não é moda o questionamento filosófico sobre o sentido da
vida. Já o foi. Suponho que as questões filosóficas também cansam, assim como
as escadas, por isso desaparecem de cena, subtilmente, contrariando o estrépito
com que apareceram.
O ser ou não ser de Hamlet está mais datado que o óleo de fígado de bacalhau. Relembro, colher a colher, o gosto horroroso daquela mistela que crianças como eu tomavam forçando naquele amargo gesto a glória de um futuro com saúde, o que para nós era um conceito de quase ficção científica.
O ser ou não ser de Hamlet está mais datado que o óleo de fígado de bacalhau. Relembro, colher a colher, o gosto horroroso daquela mistela que crianças como eu tomavam forçando naquele amargo gesto a glória de um futuro com saúde, o que para nós era um conceito de quase ficção científica.
Havia seguramente qualquer coisa de pedagógico
no óleo de fígado de bacalhau. Ainda longe das possibilidades óbvias de
misturar lenitivos doces a líquidos intragáveis, suavizando o desconforto, a
colher do óleo de fígado de bacalhau funcionava como uma espécie de lição de
vida: deves sofrer para evitares o sofrimento. Este paradoxo afirmava (assim) a
vida.
Há dias fiz uma viagem de táxi – do Porto para
Guimarães - absolutamente surreal.
O sujeito decidiu transmitir-me a sua vida, legar-ma enquanto ouvinte em todo o seu enorme peso. Não sei se por ele estar demasiado preso dentro dela, se por prelúdio para uma qualquer ansiada gorjeta, não sei. Ainda no Aeroporto ele contou-me de como era nervoso e estava ali particularmente fora de si com a cena de farwest rodoviário que antecedera a sua chegada. Comecei assim bem com um motorista alterado e com toda a minha família na viatura. Antes da primeira estação de serviço da autoestrada, depois de eu ter discorrido sobre os perigos genéricos da condução, avisando-o, penso que subtilmente (talvez demais) para a sua responsabilidade, já então ele me falava da desgraça com a ex-mulher e do feitio da atual. Permaneci emocionalmente esfíngico com uma piadola seca sobre o sexo oposto que a minha mulher não ouviria pois estava demasiado entretida a conversar no banco de trás. Antes da segunda estação de serviço já me falava do cancro, o primeiro (!) que debelou. Este segundo, disseram-lhe os médicos, era bastante mais grave. Aguentei firme com um conjunto de perguntas médicas que iam mais ao pormenor da coisa do que ao estado de espírito de quem a tinha. Mas como eu devo ter uma cara de pau do calibre das estátuas graníticas da Ilha da Páscoa guardou-me a mais impressionante para o fim. Sim, o seu pai havia-se suicidado quando o trazia pela mão era ele ainda criança, numa linha de comboio, e tentou puxá-lo mas ele escapou. Isto já na rotunda de Silvares. Dei graças por estar tão perto de casa, pois não encontrei nenhuma retórica escorregadia para tão pesado facto. Deixei-o naqueles minutos que antecederam a minha chegada a casa, pelo meu silêncio, entregue definitivamente à sua própria vida.
Penso que nada daquilo era verdade, ou pelo menos a maioria daquilo não era verdade. Só nessa convicção me sinto confortável em o escrever, agora.
A vida tem esta estranheza que advém da necessidade. Ainda que certo da efabulação de quem me contou o que contou, não deixo de achar estranho o que ali se passou, e confessar-me triste por ter soçobrado na última colher de óleo de fígado de bacalhau que ele me ofereceu.
O sujeito decidiu transmitir-me a sua vida, legar-ma enquanto ouvinte em todo o seu enorme peso. Não sei se por ele estar demasiado preso dentro dela, se por prelúdio para uma qualquer ansiada gorjeta, não sei. Ainda no Aeroporto ele contou-me de como era nervoso e estava ali particularmente fora de si com a cena de farwest rodoviário que antecedera a sua chegada. Comecei assim bem com um motorista alterado e com toda a minha família na viatura. Antes da primeira estação de serviço da autoestrada, depois de eu ter discorrido sobre os perigos genéricos da condução, avisando-o, penso que subtilmente (talvez demais) para a sua responsabilidade, já então ele me falava da desgraça com a ex-mulher e do feitio da atual. Permaneci emocionalmente esfíngico com uma piadola seca sobre o sexo oposto que a minha mulher não ouviria pois estava demasiado entretida a conversar no banco de trás. Antes da segunda estação de serviço já me falava do cancro, o primeiro (!) que debelou. Este segundo, disseram-lhe os médicos, era bastante mais grave. Aguentei firme com um conjunto de perguntas médicas que iam mais ao pormenor da coisa do que ao estado de espírito de quem a tinha. Mas como eu devo ter uma cara de pau do calibre das estátuas graníticas da Ilha da Páscoa guardou-me a mais impressionante para o fim. Sim, o seu pai havia-se suicidado quando o trazia pela mão era ele ainda criança, numa linha de comboio, e tentou puxá-lo mas ele escapou. Isto já na rotunda de Silvares. Dei graças por estar tão perto de casa, pois não encontrei nenhuma retórica escorregadia para tão pesado facto. Deixei-o naqueles minutos que antecederam a minha chegada a casa, pelo meu silêncio, entregue definitivamente à sua própria vida.
Penso que nada daquilo era verdade, ou pelo menos a maioria daquilo não era verdade. Só nessa convicção me sinto confortável em o escrever, agora.
A vida tem esta estranheza que advém da necessidade. Ainda que certo da efabulação de quem me contou o que contou, não deixo de achar estranho o que ali se passou, e confessar-me triste por ter soçobrado na última colher de óleo de fígado de bacalhau que ele me ofereceu.
A nossa vida, como as garrafas de água mineral, pode estar cheia, vazia, meia-cheia, meia-vazia, mas independentemente do volume de água que ela contém ela só ganha realmente algum sentido se o líquido (ou a embalagem) servir a alguém. Aquilo que o motorista fez foi despejar-me a sua garrafa de água em cima da minha cabeça apesar de, pela descrença, me ter impermeabilizado interiormente. Gastámos a maior parte do tempo em preocupações, ralações e desconfianças, dando ao prazer muito menos tempo do que o justo e necessário; por isso quando nos contrapõem as desgraças pessoais só apetece falar do tempo meteorológico, ainda para mais em dias, como aquele, em que o sol tentava espreitar. A conversa sobre o tempo é aliás uma conversa injustamente desmerecida.
No meio de tanta incerteza filosófica guardo algumas certezas: os estados de espírito passam sempre, ineludíveis, como a vida ... e não lhe dei gorjeta. Arrependo-me amargamente hoje desta segunda e forreta certeza.
Publicado in O Comércio de Guimarães (20.01.16)
Fotos do Filme O Navio - Fellini 1983
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