A idade adulta
“As mulheres
da idade da minha mãe metiam conversa comigo na rua. Era assédio! Agora sou um
monstro.”
António Lobo Antunes. E – a revista do Expresso. 2017.
Não sou de médicos pois não
sou, graças a Deus, de doenças. Parto sempre do princípio que tudo me passa,
que as más disposições existem para fazer um contraponto ao milagre de estar
vivo. Não concebo outra forma de ser e de estar e espanto-me com aqueles que
vivem obcecados com a doença, com o sinal, com o sintoma. Para quê morrer várias
vezes quando se pode morrer apenas uma?
Sou um contribuinte líquido
para o sistema de saúde. Orgulhosamente. Cheguei, infelizmente, à idade em que
se anda à procura de coisas que - aparentemente não existindo - são possíveis
de existir. Resisti quanto pude mas não consegui contornar o poderoso exame: a
colonoscopia!
As análises são uma
brincadeira de criança. A colonoscopia não, é um outro nível, é já a liga dos
campeões dos meios de diagnóstico. Assim o pensava eu e o meu estimadíssimo
médico de família, companheiro de luta das minhas não doenças.
No entanto, digo-vos, foi
uma desilusão.
Enquanto esperava a coisa,
ainda zonzo e enjoado de uma penosa preparação, tomava mentalmente notas sobre
o evento médico a que voluntariamente me iria submeter. O ar contrito dos meus
companheiros de colonoscopia, o silêncio pesado da sala exígua entrecortado
pelas notícias da Caixa Geral de Depósitos que vinham do televisor e a que
ninguém parecia dar particular atenção, isto na sala de espera. Na fase dois: a
antecâmera. Mais grave e ainda mais silenciosa. O silêncio voluntário daqueles
que como eu entravam e o silêncio aturdido dos que saíam. Uma enfermeira
manda-me vestir então uma bata branca e uns calções. Algumas lojas de roupa têm
horror ao XL, apertam-no para xl, o sistema de saúde também. Aquilo apesar de
muito arejado pelas traseiras estava-me apertado. Tenho de comer menos. Pouco
depois já estava no sítio. Meteram-me um açaime plástico e o tempo parou. Parou
mesmo. Até o subconsciente se finou. E o grande exame foi só aquilo: foi um
espaço sem tempo. Já se pode vestir quando se sentir bem, tenha cuidado. E eu
tive.
Finalmente o resultado: nada
vi que pudesse apoquentar, disse o médico, mas, infelizmente, a preparação foi
deficiente e terá que fazer o exame não dentro de cinco anos, mas dentro de
dois. Balbuciei, o melhor que pude, a minha defesa, como uma criança que não
tendo culpa é sempre a responsável pelo pai não saber do comando da televisão.
O meus intestinos tinham-se recusado a colaborar na plenitude. Tiveram horror
ao vazio, hélas!
Não sendo, pelo menos até
agora, e bato repetidamente na madeira, um cliente do sistema nacional de
saúde, tranquiliza-me imenso a sua existência.
Há sempre casos
desagradáveis – e eu assisti a alguns – mas regra geral o sistema funciona bem
aqui em Portugal. Os médicos, enfermeiros e outro pessoal são diligentes e
temos na saúde números de um país civilizado. O pessoal da saúde lida todos os
dias com aquilo que muitos de nós voluntariamente nos afastamos. Ficarão
porventura mais duros, mas é impossível impermeabilizarem-se, de forma
completa, à dor. Fazem da sua vida a mitigação do sofrimento alheio. E
conseguem ainda assim, muitos deles, serem simpáticos.
Para termos este sistema os
nossos gastos com a saúde são enormes. Cerca de 9% do PIB. Isto é, cerca de 15
mil milhões de euros por ano. A sua sustentabilidade foi uma das preocupações
do ministro Paulo Macedo. Conseguiu-se poupar no seu mandato cerca de 3 mil
milhões de euros relativamente ao ano referência de 2011. O mesmo dinheiro que
o BPN nos levou, a todos, da noite para o dia, sem que nenhum serviço relevante
tivesse sido prestado à comunidade.
A educação é mais modesta,
custa ao país cerca de 7 mil milhões de euros por ano. Prepara-se agora mais
uma mudança nos currículos escolares. Algumas mentes brilhantes do ministério
da educação acham que já chega de tanta Matemática, de tanto Português, e mesmo
de Física e Química, é preciso coisas alternativas, imateriais, não vá os
alunos terem um cansaço. Cidadania é uma boa aposta. É suficiente redonda e
escorregadia para que se resuma a coisa nenhuma. Eu sugiro desde já que se faça
a seguinte conta na primeira aula de educação cívica: qual é a diferença entre
o que nos custou, para já, o BES e o que custa anualmente a educação aos
contribuintes portugueses? Vão verificar que a diferença é mínima o que é um
bom ponto de partida para termos cidadãos mais atentos e interventivos. Isto,
claro, se por essa altura eles ainda souberem efetuar uma subtração ... com
tantos dígitos.
Publicado in O Comércio de Guimarães (01.03.17)
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