Era Trump



“E se fôssemos rir,/Rir de tudo, tanto,/Que à força de rir/Nos tornássemos pranto (...)”

Alexandre O´Neill. No Reino da Dinamarca. 1958.





É verdade: já passaram dois meses, nove dias, três horas e vinte e quatro segundos desde que Trump se tornou Presidente e o mundo ainda aí está. É igualmente verdade que o mundo vai desvalorizando o disparate, mas não devia. Há uma semana, por exemplo, aquando da visita de Merkel aos EUA tiveram lugar um conjunto de episódios que já não mereceram primeira página. Trump fez-se de parvo (e bem, como é seu timbre) para não cumprimentar Merkel para a fotografia, e na conferência de imprensa disse que, como a chanceler alemã, também ele foi escutado por Obama. Merkel ficou com cara de parva (não tão bem quanto Trump, diga-se) e arregalou os olhos quando, à pergunta de um jornalista alemão, sobre que provas tinha ele sobre a alegada escuta, Trump respondeu que perguntassem à FoxNews pois foi na Fox que ele ouviu a notícia. No reino da idiotia tudo é possível dizer-se. Há três meses atrás era impossível imaginar que um presidente de uma Democracia dissesse tamanhos disparates – seguidos – e a vida continuasse serena. Agora é normal.



No memorável filme Voando sobre um ninho de cucos, do checoslovaco Milos Forman (que saudades tenho eu da palavra Checoslováquia!), Jack Nicholson, a determinada altura do filme, liberta os idiotas que com ele estão encerrados numa instituição mental. É o momento alto do filme. É a catarse coletiva de quem estava preso a quatro paredes e a doses cavalares de calmantes.
Mas, como costuma dizer-se, a realidade ultrapassa muitas vezes a ficção. E é bem verdade.
Um deputado polaco no Parlamento Europeu defende que, sim senhor, as mulheres devem ganhar menos pois são menos inteligentes que os homens. O presidente turco chama nazis aos holandeses por não deixarem uma ministra turca ir fazer um comício noutro país para incitar os emigrantes turcos a votar contra a réstia de democracia turca, onde já se viu. O aprumado Dijsselbloem, alto responsável europeu, acusa os países do sul da europa de pedincharem dinheiros europeus depois de o desbaratarem em mulheres e copos, porque não? O madeirense José Manuel Coelho, ex-candidato presidencial, que procura hoje escapar à prisão pedindo asilo ao Ilhéu da Pontinha foi, bem vistas as coisas, um homem à frente do seu tempo.




A idiotia soltou-se e vai ser difícil metê-la novamente na caixa. Até aqui os idiotas disfarçavam que não o eram, agora fazem gala em o ser. Pára o um, trabalha o dois.
E as famosas redes sociais que se incendeiam facilmente como o Portugal de agosto são de há algum tempo uma espécie de antecâmara do que está para vir. E é útil perceber isso. Vejam lá se já não se teoriza sobre o que se diz sobre Trump. Que ele afinal não disse nada daquilo, que no fundo está a cumprir, que tudo não passa de uma calúnia dos jornais liberais e de esquerda. E, noutra perspetiva oposta, que o engenheiro Sócrates coitado, inocente e puro, lá continua o calvário imposto pelos jornais liberais e de direita e pelo ministério público que ficou com a engenhoca nos braços. E outros ainda que o presidente muçulmano de Londres, Sadiq Khan, não foi lesto a condenar o assassino idiota de Westminster. E as pessoas nas redes sociais amplificam com um gosto a imbecilidade reinante. E é possível voltar atrás. É sempre possível voltar atrás. É possível ter idolatrado o engenheiro Sócrates e só agora, perceber, que ele afinal não era engenheiro. Não há mal nenhum nisso. Uma pessoa engana-se mas continua em frente. Eu, por exemplo, durante o mês de março do meu décimo primeiro ano ouvi até à exaustão o Planet Earth dos Duran Duran e sobrevivi.




Já sabíamos que a idiotia tomou conta dos concursos televisivos. Já não há engenheiros - apesar de chatos - como o Luís Almeida que dava nas vistas pelo que sabia. Agora, em televisão, dá-se nas vistas pelo que não se sabe, é-se conhecido pelo grau de estupidez e faz-se gala nisso.
O que não sabíamos é que a idiotia se pretende alargar aos aeroportos. Aeroporto Cristiano Ronaldo na Madeira? Estão a brincar ou a falar a sério? Já não chega ter a Rosa Mota na nave que deveria ser de cristal? A cultura já não dá nome a nada, extinguiu-se da toponímia como um vislumbre. A ciência também não. E o Gago Coutinho e o Sacadura Cabral, eméritos aviadores, ficam por agora imortalizados num penedo de uma Penha. Um penedo que nunca marcou golos mas que sabe, como nenhum outro, ser imóvel e, sobretudo, silencioso na era da idiotia.

À Ana: a minha corretora de crónicas e de vida.


Imagens do filme Voando  Sobre um Ninho de Cucos.  Milos Forman. 1975.


Publicado in O Comércio de Guimarães (29.03.17)

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