Em modo funcionário

“(...)Não podias ficar nessa cadeira/onde passo o dia burocrático/o dia-a-dia da miséria/que sobe aos olhos vem às mãos/aos sorrisos/ao amor mal soletrado/à estupidez ao desespero sem boca/ao medo perfilado/à alegria sonâmbula à vírgula maníaca/do modo funcionário de viver.(...)”
Alexandre O’Neill.Um adeus português.1958.




velho funcionário público que tudo fazia para nada fazer está a desaparecer. As coisas mudaram por efeito de uma consciência democrática - muitas vezes feroz - que lhe tolhe a missão de protelar a coisa. Mesmos os tiques e o trejeito de olhar cansado e sobrancelha arqueada que o funcionário tinha quando alguém suspirava no balcão “ó fachavor” perderam-se na obrigatoriedade de sermos hoje utentes digitais. Há no entanto alguns vislumbres que me matam a saudade de quando éramos impotentes perante a burocracia e quem diligentemente a pastava aos nossos olhos. Recentemente tentei marcar uma consulta de urgência no médico de família e pacientemente, conforme o manual, telefonei às 8h00 em ponto. E nada. Cada chamada perdia-se no vazio e eu recomeçava a chamada com aquela angustia própria de quem torna para o fim da fila. 8h20 e a coisa continuava difícil. É melhor ir comprar o pão e o jornal de carro para que a chamada passasse para as colunas da viatura e eu não perdesse a minha vez. 8h32 fui finalmente atendido. Não sei se vai ser possível hoje atira-me a funcionária, ó minha senhora estou a telefonar há mais de meia hora não me faça isso por favor, está o senhor e estão outros devolveu-me ela a bola ... e senti que argumentar não seria afinal uma boa solução. E ela volta à carga – esperta – e pergunta-me pelo número de utente. Eu no carro, sem acesso ao cartão de cidadão, e sem espaço na memória para mais um número, balbuciei que não sabia. Fez-se silêncio e do lado de lá senti um sorriso de vitória. É por isso que se demora tanto tempo a atender as chamadas, vá lá diga-me a data de nascimento condescendeu a funcionária, e eu disse-a, a medo, tremendo de gratidão.



culpa é sempre, habituamo-nos, do funcionário público. Por isso as suas lutas são uma maçada para o resto do povo envenenado, a preceito, pelos poderes de ocasião.
Neste país o deficit público depende mais das obras faraónicas a que se deitou a fazedora mão, e do serviço da dívida que com elas nasceu, e não propriamente do funcionário público. Neste país a dívida das empresas é superior à dívida do estado, e algumas delas endividaram-se sob a influência dos poderes políticos e hoje nada pagam e deixam a fatura a todos, neste país injetaram-se 15 mil milhões de euros desde 2008 no sistema financeiro, neste país não fora os desmandos das PPP´s e o deficit público seria (mais) controlável ... mas a culpa casa sempre bem com o funcionário público. Num país em que a educação pública permite, ainda, através do mérito e do esforço a mobilidade social daqueles que não tiveram a sorte de nascer em famílias com dinheiro ou cultura, num país em que os mais pobres não ficam barrados, como noutros países, às portas do hospital público, a culpa será sempre dos professores, dos médicos, dos enfermeiros. Porque há quem jure que somos todos uns malandros e o bom era quem tem tem e quem não tem não tem, paciência. E este medieval pensamento vai ganhando raízes no populismo (supostamente) liberal e concorrencial dos dias que vivemos.
Talvez a expressão não seja a melhor, talvez. Os ingleses têm o public servantque, parece-me, tem uma fonética mais adocicada: servidor público, nós não, temos a palavra funcionário para nos funcionalizar e tirar assim qualquer pretensão de serviço ao outro.
Eu, professor, funcionário público, estou em greve. Admito que sou um felizardo por poder lidar, todos os dias, com jovens espertos que me obrigam a estudar e a andar em frente para os conseguir ensinar e liderar. Isso bastaria para que eu dispensasse o salário ou a carreira, mas não. Egoísta me confesso. Que heresia esta a de fazer uma greve que dói. Eu, um inconsciente adolescente, com licenciatura e um mestrado em Educação estou já, apesar de tão jovem, no 4º escalão de uma profissão que tem 10 escalões. E como só penso em mim, não consigo ver a diáfana possibilidade de chegar ao topo da carreira aos 112 anos de idade e poder gozar ainda, vá lá, uns oito anos de reforma no pico supremo da minha forma intelectual.
A educação é a paixão de todos. Mas uma paixão platónica, assim a modos que. A educação ficaria muito mais tranquila sem os malandros dos professores, admito. Respeitar compromissos e expectativas, motivar os professores é uma maçada e não interessa nada para a qualidade da educação, nada. Aliás há computadores ... e esses não fazem greve!



prédio que se agiganta hoje, visivelmente, nas barbas do vetusto Mosteiro da Costa é um atentado à paisagem e ao cuidado dos vários Planos que Guimarães urdiu pacientemente ao longo de décadas e que lhe deram até hoje um urbanismo aceitável. A celeuma levantada nas redes sociais e nas opiniões a propósito é – como já aconteceu noutras casos – um bom sinal. Uma cidade que não baixa os olhos ao seu destino é uma boa cidade. E continua a ter futuro, independentemente das asneiras que se cometem. Dificultar o erro – chamemos-lhe eufemisticamente assim – é uma tarefa de todos. Em especial dos (mal amados) funcionários públicos. 


Publicado in O Comércio de Guimarães, 4 de julho de 2018
Imagens (de cima para baixo): canadianstage.com+abc.net.au+sciencehistoryinstitute

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