Mousse caseira
“Saiba-se
antes ler neste acompanhamento jocoso das piruetas marcelinas uma irresistível
simpatia posta em humor por travessuras para mim ainda mais atraentes dado o
enfadamento que a solenidade me provoca(...)”
Natália Correia. Recomendação
Introdutória in O Corvo. 1989.
A RTP engana-se
(por vezes) e presta assim um verdadeiro serviço aos telespetadores. Foi o caso
da série “3 mulheres” recentemente exibida no canal público. A série dá-nos um
retrato muito interessante do nosso país entre 1961 e 1973 através de 3
mulheres que naquela altura - e no Portugal macho e xaroposo de então - se
distinguiram: Snu Abecassis, Vera Lagoa e Natália Correia. Não há como não
ficar fascinado com a poetisa Natália Correia interpretada, de forma brilhante,
por Soraia Chaves. A mulher tem tudo, tem graça, tem cinismo, tem uma
incontrolável liberdade. Revi por influência da série a antologia da poetisa,
da editora Dom Quixote fundada por Snu, que comprei há mais de vinte anos e que
havia mal lido com a rapidez de um melro. E os livros têm esse sentido. Sabem sempre
esperar, silentes, pelo momento oportuno, por isso eu os compro. Li na
antologia um conjunto de poemas em que ela troça de forma desbragada de Marcelo
Rebelo de Sousa que na altura se candidatava à presidência da Câmara de Lisboa.
E o mais espantoso é que esses poemas foram publicados no jornal O Corvo, o jornal da campanha da
coligação eleitoral autárquica que o sustentava! É gozo e premonição: “Estremece
Aníbal com o pardal fadista/ que aquilo é treino para o último regalo:/
escaqueirar o reinado cavaquista/ e sobre a tumba, por fim, cantar de galo”.
Gozar com o candidato no jornal do candidato é incrível e hoje até (possivelmente)
obsceno neste Portugal “moderno”. O que só ficou e fica bem a Marcelo.
Não gostar de
Marcelo é como não gostar de Frank Sinatra, do seu swing, por causa daquele pormenor relativo ao ajuntamento
organizado de italianos de que o acusam. Não gostar de Marcelo é contudo muito
modernozinho, é contracorrente, é hype,
é ter e assumir um problema com o óbvio.
É evidente que o
homem exagera. O telefonema àquela rapariga é um disparate próprio de quem
deveria dormir um bocadinho mais e não o faz. Mas ninguém, acho, é capaz de o
imaginar desonesto como o pessoal dos robalos ... que é o que mais há. E, se o
ouvirem sem preconceitos, encontramos um homem genuinamente preocupado com os
seus concidadãos. O problema de Marcelo é outro: fizemo-lo presidente na época
de ouro dos grunhos. Olhámos para as outras nações e vemos que os grunhos tomaram
o poder, e Marcelo é tudo menos grunho, é, pelo contrário, um espécime perfeito
do anti-grunho. E isso está fora de moda. O problema dos dias de hoje comparado
com os dias de ontem é que os grunhos já não têm vergonha de se reverem noutros
grunhos, coisa que dantes não acontecia com a frequência assustadora a que hoje
assistimos. Em Portugal ainda não, à exceção do futebol.
Se nós,
vitorianos, tivéssemos os resultados desportivos que o nosso arqui-rival Braga
tem tido nos últimos anos, já de há muito que estávamos encerrados para unicamente
festejar o nosso clube. Aliás o Vitória ter tão parcos resultados desportivos e
uma massa associativa tão fiel, apaixonada e presente seria aliás um
justificado motivo para se ser ateu. Não é possível que Deus, existindo, não
recompense devidamente esta paixão. Não é possível que Ele vá precisamente
descansar quando cantamos em uníssono oiçam
bem/ a força do nosso amor/ o Vitória somos nós/ até morrer.
Mas o Braga está
tão à frente que até foi jogar para Vila Verde. Abandonar o estádio 1º de Maio
foi um erro estúpido e caro para os nossos (estimados) rivais. Sempre
simpatizei com o velho, bonito e imponente estádio do Braga, até porque
assistindo aos jogos do Vitória sempre na bancada Sul tinha a estranha noção de
que o nosso concelho só terminaria, vá lá, perto da linha do meio campo. O
Vitória conservou, com muita luta é certo, o estádio na cidade no coração do
concelho onde os estádios devem estar. Coimbra felizmente também fez o mesmo. Na
altura havia outros interesses ... assumi, enquanto vereador, como outros o
fizeram, a responsabilidade de o manter na cidade e hoje tenho indisfarçável
orgulho na posição então tomada.
Um clube como o
nosso tem de estar onde os adeptos estão. As “operações urbanísticas” são,
quase sempre, um eufemismo para coisas que nada têm a ver com o interesse do
clube. Quando se fala em “terrenos” há que estar alerta. Arrancar o coração do
peito para o pôr na barriga da perna é fatal. Nunca funciona.
Já de há muito que não ouço a
expressão mousse caseira. Mas há uns anos atrás era comum perguntar-se se a
mousse era caseira. Isto para se aquilatar se aquela era mesmo feita com
chocolate, manteiga e ovos ou então com um pó achocolatado a que se juntava
água. Num restaurante em Coimbra, lembro-me, de alguém protestar que a mousse
não era afinal caseira ao contrário do afiançado e, no calor retórico, o
empregado enfunou-se e respondeu “a mousse foi feita aqui! garanto-lhe!”. Esta
crónica foi, mais ou menos, isso.
Publicado in O Comércio de Guimarães, 30 de janeiro de 2019
Imagens: Observador, DN, restos de colecção
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