O QUE FAZ FALTA


“O que faz falta é animar a malta/ O que faz falta/ O que faz falta é empurrar a malta/ O que faz falta.”
Zeca Afonso. O que faz falta. 1974.

Nestes dias de chumbo dados ao medo e à ansiedade é vulgar que se reflita sobre a vida, sobre o que realmente importa, sobre as coisas pequeninas que, afinal, eram grandes! Estes dias de chumbo são propícios à epifania individual e coletiva, tão bem plasmada no fim dos noticiários em que os pivôs televisivos a praticam com assinalável desvelo. E fazem-no com um misto de olha p’ra mim mas também, suponho, com a genuinidade própria do medo. Evito ainda assim, por cautela, o final dos telejornais.



Tenho também evitado o ócio com a mesma disciplina com que evito o vírus. Depois dos primeiros dias de confinamento serem de tal forma confusos que não consegui arranjar método, já o descobri agora. E de tal forma tenho estado bem no método ... que já tenho trabalho atrasado. A rotina é fabulosa para dar sentido ao ócio. Reconquistei, pelo método, o prazer de ver séries e filmes. The English Game e Unorthodox, séries recentes da Netflix, são mesmo muito boas. A primeira sobre o nascimento do futebol na Grã-Bretanha, a segunda, excecional, sobre uma comunidade de judeus ortodoxos de Brooklyn, Nova Iorque, com ligações à bela cidade de Berlim. Que, diga-se, me faz imensamente falta não conhecer.




Faz-me falta o ócio proibido. Faz-me falta a transgressão de fazer uma coisa quando deveria estar a fazer outra. Faz-me falta Berlim e uma espreitadela turística num bairro judeu de Nova Iorque. Fazem-me falta os concertos. Faz-me falta o Kiwanuka, a 9 de maio próximo, no Palácio de Cristal. Faz-me falta a Marem Ladson num concerto ultrassecreto da Capivara Azul, como são os bons concertos. Fazem-me falta as pessoas, mesmo os imbecis que estacionam em segunda fila para ir tomar café. É provável que esses imbecis andem, por estes dias, com aqueles cãezinhos de brincar e mudam de passeio quando por eles passo e cravam os olhos na calçada para evitar um bom-dia que, por estes dias, gosto de desbaratar para me sentir em comunidade. A epidemia reforça, como é bom de ver, a idiotia. Fazem-me falta as pessoas de quem gosto, sem máscara, de as abraçar, de me rir com elas, de as fazer rir se possível. Faz-me falta combinar coisas e jantares dentro dessas coisas para quebrar a rotina irritante de que sinto (estranhamente) falta. Faz-me falta abraçar mais as minhas filhas, não que eu seja dessas mariquices, não senhor, mas a impossibilidade torna aguda a ausência de uma cabeça sonolenta encostada no meu ombro, como se ainda fossem crianças. Sobra-me, felizmente, a Ana para o fazer. Há que cumprir o prometido: amar na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Fazem-me falta as minhas aulas de ginástica, o Pilates e particularmente aquela aula de localizada logo pelo início da manhã na companhia de três pendulares colegas, em que dou o meu melhor para as acompanhar. Não sei o nome delas, mas farei seguramente questão de o saber quando retomarmos a tarefa. Faz-me falta a conversa de circunstância em que me adapto ao interlocutor. Essa circunstância vazia em que mantemos vivas as palavras como bolas de sabão prestes a estourar. Em que se aguentam no ar palavras frágeis e insignificantes, muito diferente desta circunstância plúmbea que se dirige no sentido da gravidade de Newton, na gravidade das coisas. Faz-me falta o barulho, a confusão, a fila para comprar cerveja no concerto dos New Order. Faz-me falta saber afinal como está o meu colesterol. Infamemente postergado para mais tarde, pela situação.




E é por estas alturas – em que caímos pela escadaria abaixo, mas ainda longe, muito longe, do fim da queda – que eu renovo a minha devoção à liberdade e à democracia. À informação livre, mesmo que aqui ou acolá com laivos de melodrama. Escusada: já que a realidade fala por si. Vejo a China, vejo a Rússia, a Turquia, e mesmo até a esquizofrénica Hungria e irritam-me. Vendem verdades paralelas e açaimes. Vejo o Trump e choro interiormente a fanfarronice patética e irresponsável dos americanos. Vejo a Europa perdida e acredito, mesmo assim, que será possível. Somos irmãos que diabo, quando muito primos. Não podemos dar-nos ao luxo de não estarmos juntos. E já bastaram os ecos da última crise: mais nacionalismo, mais extremismo que, mesmo rejeitando os princípios democráticos, se sentam na cadeira da democracia para a sabotar. E mesmo aqui, ao nível político, a procissão ainda vai no adro. Depois das precoces ejaculações dos primeiros dias é só esperar. Os extremismos estão à espera que a coisa fique pior, fique insustentável, para aí sim, perante um pasto de desolação, nos tentarem pôr uns contra os outros. Para esses tenho a minha vacina particular há muito: acredito piamente na democracia, na tolerância, na liberdade, na solidariedade social.




Não sou, por agora, dado a epifanias. A última que tive já tem 12 anos.
E se não sou dado a epifanias, mesmo por estes dias tristes, é porque já tenho idade suficiente para perceber o que realmente importa. Estou convicto disso. As coisas que me fazem falta sei - de há muito - que me fazem falta. Hoje são mais pesadas porque ausentes, apenas isso. Descobri uma vantagem de envelhecer? Será isto uma epifania? Espero que não, pois tenho muito que fazer.

Imagens: Edward Hopper/automat (1927); Yves Klein por Harry Shunk/salto no vazio (1960); HT Lautrec/mulher nua frente ao seu espelho (1897); Caravaggio/ a incredulidade de S.Tomé (1601/2)

Publicado in O Comércio de Guimarães a 8 de abril de 2020

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