Contra o pessoal do contra

 “(...) falava estoicamente de si próprio e dos outros com azedume. Tudo lhe desagradava. Não havia homem bem colocado que não fosse cretino ou canalha.”   Gustave Flaubert. A Educação Sentimental.1869

 

Todo um bom e equilibrado grupo de amigos tinha sempre alguém do contra. Fazia parte da orgânica da amizade e dava-lhe graça. Se estava sol é porque estava sol, se não estava é porque fazia imenso frio. Nunca existia para eles um programa adequado, um dia feliz, um jantar competente, ou a música certa. Sendo apenas um - o amigo que assim pensava e assim o dizia - a coisa tornava-se pitoresca e aguçava a retórica. Pelo que vou vendo é possível que hoje os novos grupos de amigos que se formam tenham como estranho apenas um elemento para o qual tudo está bem ou razoável. As coisas mudaram. Ser alternativo é, agora, estar a favor de alguma coisa.



 

Uma das coisas mais comuns de ver ou ler por estes dias é o testemunho frentista daqueles que se revoltam contra as imposições governativas do uso de máscara ou outras restrições associadas, considerando-as limitadoras da liberdade individual. Que o são não há dúvida. Que existe uma certa desorientação e hipocrisia na forma como as autoridades estão a tratar a questão, utilizando diferentes pesos para situações semelhantes, também não tenho grandes dúvidas. No entanto quando a casa está a arder é difícil ser-se racional e coerente. Concedo, apesar da crítica, pelo menos isso.

Naturalmente que a coisa seria diferente se fosse possível fazer o seguinte: quem quisesse usar na plenitude a sua liberdade de não usar máscara ou frequentar ajuntamentos requeria ao Ministério apropriado essa mesmo desejo. O competente funcionário deferiria, logo ali, a libertina pretensão em papel timbrado. No entanto essa pretensão implicaria que se o cidadão apanhasse Covid iria para o fim da lista do SNS e não teria apoio da Segurança Social caso algo de mal lhe sucedesse. Penso que, talvez, dessa forma a percentagem de valentões caísse drasticamente.

Estou igualmente farto do pessoal pró-vida (expressão matreira) que se indigna contra a eutanásia e quer um referendo para que outros decidam sobre a minha liberdade individual de querer morrer se não tiver em condições de viver com o mínimo de dignidade.


 

Sinto-me assim, por estes dias, furiosamente contra o pessoal do contra! 

Sinto-me triste e preocupado por a política se ter tornado num combate em que vence quem conseguir ser mais do contra do que o outro que também é contra, mas não o suficiente. Trump foi eleito pois era contra Hillary e a malta liberal de Washington D.C., agora é contra a China ou o caral**, como dizia a simpática senhora a favor da boa disposição. E Trump traz até o imbecil do Farage - vencedor do contra a União Europeia - para um comício seu. Até o Biden – que esperemos que ganhe – fez da sua campanha um grande contra o atual presidente.

O pessoal do contra cansa-me. Estou farto dos permanentemente indignados e deliro com alguém que me diz que adorou a feijoada que acabou de comer, ou um filme que viu e o deliciou, ou uma música que não consegue parar de trautear. É refrescante e intensamente alternativo ser a favor de qualquer coisa

Estou farto das claques de indignados. Das inorgânicas e das orgânicas. Das claques de futebol, das claques supostamente morais e das claques religiosas que degolam os outros só porque sim. Que é feito de uma saudável discussão? Que é feito da discordância apresentada com elegância e perspetiva? 

Estou farto de pessoas que pelo facto de não estarem em paz consigo mesmas, em vez de procurarem a sua paz particular, ateiam as chamas de um inferno coletivo em que ninguém presta. E esse fogo assim ateado cria as ditaduras e o pensamento único. É só conhecer a História.


 

A vida traz por estes dias uma data de coisas que nos arreliam e que põem em causa os nossos projetos e sonhos de um mundo melhor e de um país melhor. Só isso bastaria. Não precisámos certamente de gente que carregue de negro o presente, mas antes de quem acredite no futuro e o queira conquistar com a maior variedade de cores e de matizes e nunca em pensamentos carregados de ódio, básicos e castradores. Que defenda alguma coisa em vez de atacar tudo e todos. Até onde conseguiremos ir sem nos indignarmos contra os indignados que nos encarceram dia a dia?



Publicado in O Comércio de Guimarães a 4 de novembro de 2020


Imagens de coisas que eu sou completa e musicalmente a favor (de cima para baixo): Lila Ike, FKJ e Jhené Aiko.


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