O TRIUNFO DA CRUELDADE
O que se passou, no Parlamento português, entre a bancada do partido Chega e a deputada do PS Ana Sofia Antunes é, seguramente, uma vergonha para aquele órgão, mas, também, para Portugal. A deputada socialista foi menorizada, por outra deputada da bancada do Chega, pelo facto de, no parlamento, se predispor apenas a falar sobre temas que envolvem a deficiência, como se não fosse natural ela fazê-lo. Mas a essa falta de educação e de polimento acresceu, sobretudo, os apartes de “aberração” e “drogada”, feitos por deputados do Chega que, além de não possuírem qualquer pingo de decência, já de há muito cruzaram a fronteira da imbecilidade própria para se colocarem, impantes e seguros, no pedestal da crueldade. Algo de muito mais perigoso: a imbecilidade pode apenas caracterizar, mas a crueldade já corrói a nossa vida em comum.
Não me espanta nada o nível rasteiro dos deputados do Chega, espanta-me é que tanta gente os apoie. Se há coisa que para mim é clara é que eles parecem efetivamente o que são, não enganam: arregimentam às claras pelo ódio como programa político. Nunca aceitei bem a benigna teoria de que o crescimento eleitoral do Chega se deve a uma reação à degradação da vida política. Eles são o espelho da degradação da vida política e não a reação a ela.
A comunicação social agressiva e pouco criteriosa, bem como o advento das redes sociais, não explicará tudo. Vivemos tempos em que a desgraça e humilhação dos outros constitui, para muitos, um prazer e um modo de estar. A história do mundo é, convenhamos, um pouco assim. A instauração das democracias permitiu encontrar alguma luz, no Ocidente, após uma guerra que se ancorou em ódios e na superioridade racial. O conjunto das conquistas sociais entretanto alcançadas são, hoje, estranhamente, menorizadas. A história tem, muitas vezes, a estranha mania de se repetir. E cabe, a cada um de nós, a responsabilidade de encravar a roda, quando a crueldade volta a emergir, sem deixar que aqueles que toleraram e toleram regimes repressivos e sanguinários, no outro extremo, tomem, hipocritamente, a dianteira do combate à extrema-direita.
A crueldade está a solta e vai ser difícil metê-la na caixa novamente. A crueldade hard ou a crueldade soft. Sim, muitos daqueles que se arrepiam com os desmandos do Chega, vão partilhando, sem qualquer contrição, nas redes sociais, e nas conversas de ocasião, desconsiderações sobre Marques Mendes. E muita gente, sedenta da humilhação alheia, congratula-se pelo extraordinário escândalo político de Marques Mendes ser baixinho. Que pecado, meu Deus!
Gosto do Marques Mendes enquanto político, mas, sobretudo, enquanto pessoa. Reconheço-lhe imensas qualidades para ocupar o cargo de Presidente da República. Alguém cuja vida pessoal se confunde com a vida pública, amplamente escrutinada pelo que fez ou deixou de fazer, terá, a meu ver, o perfil certo para lidar com inteligência e tato com os imensos desafios que uma Presidência da República comporta. Principalmente por estes dias tão tensos e confusos que precisam de alguém com experiência política, visão de conjunto e, sobretudo, bom-senso.
Não é só na atividade política e no alinhamento de um sentimento democrático que o combate à crueldade deve ser feito, mas também no dia a dia de cada um de nós. Como cidadão tenho obrigações de lutar por uma sociedade mais justa e tolerante sem, naturalmente, participar, no espetro oposto, no festim do wokismo que contamina e divide a sociedade. Devo isso à democracia portuguesa e ocidental que me proporcionou uma educação pública de qualidade, uma vida democrática, a proteção no trabalho e na saúde, o acesso à cultura, a expressão livre das minhas ideias. Mas o que está, atualmente em jogo, é demasiado importante para nos alhearmos. Não, não tolero ter no meu círculo de contactos próximos alguém que se revê e vota no Chega. E há que verbalizar isso sem medo ou tibieza. O tipo de gente que o Chega promoveu não presta, mas os que os apoiam também não podem ser muito melhores. Tirando casos de infeliz psiquiatria, há que não tergiversar. É que o triunfo da crueldade está visivelmente a caminho e ele não é apenas uma moda, uma momentânea indisposição coletiva. A crueldade é um cancro que veio para ficar, e que não passará se só a ignorarmos, sem a combatermos.
E sim, sairmos da modorra, incomodarmo-nos e verbalizarmos isso.
“Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já não o tenho.”
Bernardo Soares. O livro do desassossego.1930.
Publicado in O Comércio de Guimaraes, a 18 de fevereiro de 2025
Imagens do filme Laranja Mecânica, do realizador americano Stanley Kubrick (1971)
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