A unha

 O tempo muda tudo de forma permanentemente. A única coisa que permanece é, paradoxalmente, a mudança. É essa a irritante – ou excitante - característica do tempo que passa. 

Se não mudarmos com o tempo, permanecemos agarrados ao passado e chatos pela particularidade repetida de no meu tempo é que era. Se tentarmos apanhar sempre a onda, as tendências do tempo, fica a estranha sensação de que o nosso passado foi um engano. Nunca se está bem, portanto. Existir será, então, um estado de permanente desfasamento com a realidade. Por defeito, ou por excesso, tanto faz.



 

Quando se é novo há uma urgência de futuro, quando se é velho há excesso de saudosismo que desmerece o presente. Haverá algum ponto de equilíbrio em que estejamos decididamente bem com o tempo que temos?

Agora que já sou sexagenário, mas ainda não fui atropelado por um carro como os sexagenários o eram no tempo em que eu era jovem – a fazer fé nas notícias do JN de então-, terei uma noção do tempo mais longa que já alguma vez tive.

E esse tempo esticado é-me útil? Talvez o seja. Tirando o progressivo endurecimento das minhas unhas dos pés, especialmente as grandes, o tempo esticado leva a perceber que nada é definitivo. Que não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe. E que aquilo que parece uma desgraça tem sempre conserto, ou quase sempre. Tirando as minhas unhas. Já pensei ir à pedicure, mas tenho alguma prévia vergonha, pois nunca frequentei esses sítios e tenho algum receio que tratem os meus pés com imerecida relutância. Às tantas é melhor fazer como a minha avó: bacia de água muito quente e depois o corte das unhas com um artefacto resistente. Ainda irei decidir.



 

Por estes dias a “elite pensante” anda aterrorizada com os resultados eleitorais do Ventura. Até televisivos “democratas” clamam pela ilegalização do partido do novel pregador. Confesso-me também como parte dessa surpresa e desse profundo desconforto, mas a democracia é isso mesmo: há que lidar com conceções diferentes e combatê-las olhos nos olhos. Vá lá que pertenço a um Norte que não vai tão facilmente em cantigas, pois tem, desde há séculos, a máxima kennediana de que somos nós que fazemos, pela nossa capacidade e trabalho, o país que temos e não é o país a fazer-nos. No entanto, para não chorar, divirto-me com as análises daqueles que há bem pouco incensavam as classes trabalhadoras do Sul, a sua tenaz resistência, por comparação aquilo que eles diziam do Norte: atrasado e conservador. Pelo belíssimo Alentejo, Algarve e Setúbal seríamos governados pelo Sr. Ventura. As pessoas do Sul, a cultura do Sul, não mudou assim tanto, mudaram foram as necessidades e os problemas. Como escreve bem Henrique Raposo, alentejano, os avós dele votavam no PCP não por serem marxistas-leninistas, ou amarem a URSS, mas tão somente porque queriam pão e um contrato de trabalho. 

No Norte as coisas (ainda) funcionam, no Sul não. 

Mas temos de ser positivos. Já ninguém é apodado de racista quando diz que a imigração é um problema para o qual urge olhar com atenção, depois de quase uma década de bandalheira e irresponsabilidade, precisamente por aqueles que nunca puseram as suas intelectuais nádegas nos transportes da Carris, na Transtejo, nos comboios suburbanos, numa consulta do SNS que dizem defender. E como a excitação entontece vinham-nos torpedeando, com a implacável retórica do Sr. Boaventura (um Ventura da extrema-esquerda), que a culpa do mal do mundo era nossa: os ocidentais. Era do Império Romano, do Vasco da Gama, do Churchill, e de outra gente que – na relatividade do tempo e da circunstância - tornou a nossa Europa num farol civilizacional.



 

Mas enquanto o PS reflete e os comentadores comentam os comentários dos comentadores que os antecederam, é preciso ter, igualmente, apesar do meu profundo otimismo na capacidade da democracia e das sociedades ocidentais, e no meu próprio país claro, a noção de que tudo pode sempre ficar pior. Quando a deputada Jamila renuncia à sua eleição por Faro, para dar lugar ao seu companheiro não eleito, tomando (ela) assento na REN, sobre o pretexto de se centrar no “apoio aos seus camaradas e à eleição de José Luís Carneiro”, é necessário, porventura, pensar melhor um pouco e alguém dizer-lhe que: assim não! O Sr. Ventura vive da indignidade alheia, seja ela verdadeira ou inventada, vive do exemplo iníquo para arrasar com tudo. O homem é esperto e tem uma retórica garota: quando fala dos outros diz serem “tachos”, quando se trata de colocar os seus fiéis no aparelho de Estado já fala de “cargos”. Reparem. Chega a ser cómico, apesar de trágico. E o PSD precisa igualmente de ganhar juízo e não se enredar em justificações habilidosas. A verdade é sempre preferível à manobra. É bom que tal se aprenda e se assuma, com convicção. O resultado das legislativas não é trágico, a democracia nunca é trágica. Absolutamente sinistro seria não aprender nada com o desconforto que os resultados eleitorais revelaram.

Como escrevia a minha adorada Yourcenar, com 26 anos apenas - ela que compreendeu o tempo desde sempre-, é imperioso que o tempo nos leve, não que nos arraste. E ser arrastado pelo tempo e pelas circunstâncias que ele encerra é bem mais grave do que a inevitável dureza das unhas dos pés.


“(...) gosto que o tempo nos leve, não que nos arraste.”

Marguerite Yourcenar. Alexis. 1929.


Publicado in O Comércio de Guimarães a 11 de junho de 2025


Imagens (de cima para baixo): pés de Margot Robbie e Margaret Qualley em Era uma vez em Hollywood (2019) e de Uma Thurman em Pulp Fiction (1994). Filmes de Quentin Tarantino.

 

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