Piegas

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Nós somos um povo difícil de entender … até na Língua.

Uma Língua tão antiga e rica como a nossa é merece radicais atitudes daqueles que defendem o óbito prematuro do acordo ortográfico, mas não se incomoda em utilizar com enervante frequência palavras e expressões da língua inglesa. Já há anos que nos confrontamos com o uso indiscriminado dessas palavras ou expressões na comunicação social ou por parte de gente responsável em áreas específicas do governo da nação. Bullying é uma delas quando se quer falar em violência física e/ou psicológica em contexto escolar. Poder-se-ia utilizar a palavra assédio ou designar por rufias aqueles que usam a maldade para enxovalhar os colegas, mas não: bullying é o que está a dar.

Para quem, como eu, entrou para o ensino público nos anos 70 a violência escolar ou o assédio dos rufias foi algo com que tive que lidar sem me queixar particularmente a ninguém, pois o assunto resolvia-se sempre enfrentando-o ou levantando a cabeça após sofrer qualquer crueldade gratuita, pois a coisa era mesmo assim que funcionava, era assim que os heróis dos filmes do John Ford funcionavam. A máxima “o que não mata engorda” enchia as imensas horas de liberdade que tínhamos em miúdos. Esse tempo fazia-nos expor aos riscos mais absurdos mas tornava-nos mais fortes e cúmplices nas amizades. Havia sítios que era necessário evitar pois percebia-se que iríamos dar de caras com o bando do Fulano ou do Sicrano. A estratégia era estar atento e evitá-los ou, caso não fosse possível, marcar um adulto a quem pedir proteção caso a probabilidade virasse assunto.

Várias gerações do tempo em que não se dizia bullying têm episódios absolutamente inacreditáveis aos olhos de hoje.

As portas dos estabelecimentos de ensino constituíam-se muitas vezes não como uma normal entrada mas como uma espécie de alfândega onde os mais novos tinham que passar diariamente após cuidada inspeção dos mais velhos, cujo conceito de escola era o de estarem ali a chatear quem tinha a peregrina ideia de ir às aulas. A confiscação do lanche era a pena mais leve “com marmelada? Vê lá se dizes à tua mãe para te fazer uma sandes de fiambre que eu já estou a ficar farto disto” (na altura a sandes de fiambre era particularmente apreciada) até às mais sofisticadas “então e o meu cigarro? Sem o meu cigarro não entras”. E lá tinha a pobre criança que dar meia volta, ir a casa correndo o risco de ter de inventar uma desculpa plausível para a mãe, já que não passaria pela cabeça de ninguém queixar-se à progenitora (e as mães dessa altura não tinham então o escatológico hábito de falar para a TVI), roubar um cigarro da gaveta do pai, pagar o tributo ao rufia e, finalmente, entrar na sala de aula. É perfeitamente compreensível, visto de agora, que alguém se sentisse profundamente desanimado ao assistir a uma aula chata depois de tanta adrenalina. E como a crueldade não tem limites de imaginação havia gente que em jeito de castigo pela omissão ou reação de um petiz mais rebelde obrigava os companheiros a abrirem-lhe a boca para escarrar alarvemente para o interior boquiaberto do petiz. Eu sei que é nojento, mas acontecia. Isto já para não falar dos assuntos das raparigas que eram apanhadas no meio de uma turba de rufias que em segundos pretendiam conhecer em pormenor todos os centímetros quadrados da infeliz criatura.

Não sendo porventura óbvio é melhor dizer que não acho a geração X melhor que a Y ou esta pior que a Z. Nunca tive a pretensão de escalonar listas de gerações. Cada qual tem a sua história, cada qual tem o seu tempo, ambos irrepetíveis. Apesar disso permito-me olhar para os mais novos e não lhes invejar a falta de tempo e de liberdade. Os da mó-de-cima atolados de atividades culturais e pedagógicas, os da mó-de-baixo enterrados em intermináveis e infrutíferos planos de recuperação. A minha geração teve o tempo e a liberdade que agora escasseia. Esbanjou-os em coisas dispensáveis ou em coisas úteis; é estultícia fazer agora (ou em qualquer momento) essa contabilidade. Permito-me apenas relembrar o tempo em que as horas de estar em casa só existiam para as refeições, lembrar o tempo em que ninguém telefonava e a queixa era um luxo.

Enfim … épocas em que os miúdos tinham a agilidade para se desviarem, ao contrário de hoje, das balizas que tombavam. Provavelmente bullying fosse um termo demasiado piegas para ser utilizado na altura. Provavelmente utilizá-lo em público daria direito a um violento croque na cabeça … para não me armar em esperto.

 

 

Publicao in Comércio de Guimarães

Comentários

Adorei!

Inúmeras vezes, com os meus camaradas de infância (sim, eu sou do tempo em que a camaradagem era muito mais que uma sigla associada ao comunismo - naquela idade a malta nem sabia o que era a política), temos passado noites de sábado a relembrar este tipo de episódios da nossa infância! E é bom! Concluimos que tivemos infância, que fomos crianças, que jogamos ao berlinde, que unhas sujas com terra eram "verniz" do dia a dia de quem brincava com carrinhos - e não raras eram as vezes em que, fruto da "suspensão baixa" dos bólides, lá se ía um "bife" num dedo.

Que bons tempos! Não porque fossem melhores, mas porque garantidamente fizeram de nós melhores e mais criativos. Naquele belo tempo não havia pistas de carrinhos (eram coisa cara que só se via na televisão no natal), mas nem por isso deixamos de ter as melhores, desenhadas ora com um caco de tijolo ora com "sobras" de pau de giz que trazíamos da escola.

Confusão era sempre resolvido a sôco e não raras vezes à lei da fisga e à pedrada (ainda hoje nos perguntamos como nenhum de nós morreu naquela bela idade em que se atiravam pedras à cabeça como se de um cruzamento para cabeceamento à entrada da àrea se tratasse).

Havia naquela altura uma expressão que usavam os velhotes da terra e que nos caracterizava, ainda que possa ser de uso linguístico correcto com outros sentidos, diziam eles que a gente assim se fazia "ladino". O rótulo "ladino" era quase o mesmo que ter conseguido uma medalha de uma qualquer ordem de mérito! Era sinal de ser desenrascado, traquina, reguila!

Muitos "ladinos" se fizeram naquelas ruas... e sim, também já tínhamos consolas, simplesmente era bem mais divertido tudo o resto!
Rui Vítor Costa disse…
E eu que julguei que eras "novo"...
Grande abraço.

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