O número

 

“Ela fumava, nesse tempo, e tinha um ar lânguido e pensativo que eu associava ao cinema francês. Revelou-se, com o passar dos anos, ser afinal miopia. O olhar misterioso, mas isso não lhe retirou o fascínio, pelo contrário, até me sossegou.”

Júlio Córtazar. Bestiário.1951.

 

 

Tenho registado, com particular ternura, o hábito de empregar o ano do nascimento para definir a idade de alguém. Tenho-o ouvido da minha mulher, dos meus amigos, e mesmo de mim próprio, com cada vez mais frequência. Tu deves ser de 65, ou aquele fulano é seguramente de 64, ou até mesmo de 63, tu és afinal de 67 bem me parecia...

A minha geração consegue assim disfarçar o incómodo do tempo referindo-se à sua idade da forma elevada como se refere à colheita dos bons vinhos. As boas uvas obtêm-se nas condições específicas que o tempo meteorológico proporcionou, nenhum apreciador tem a deselegância de dizer que um determinado vinho tem 30 anos. É feio, fala-se do ano da colheita pois o vinho é intemporal (até o deixar de ser). Todos somos vintage. Todos temos uma marca do ano em que nascemos. E se alguém se sentir incomodado pela delicadeza da geração que assim se define, que faça as contas.

E quando um dia, mesmo assim, for já indelicado referir o ano, pode ser que adotemos de forma ainda mais sub-reptícia o calendário chinês. Afinal tu és coelho ou cavalo?

 

 

A excitação provocada pela vitória socialista em França causou um grande entusiasmo nas hostes nacionais por aquilo que se percebe pela leitura dos jornais. Compreenderia o entusiasmo se este resultasse da higiénica substituição de uma personagem de opereta (como era Sarkozy) por um homem culto e discreto (como suponho que seja Hollande), mas não.

Desata-se então a falar de crescimento como se falar dele fosse suficiente para crescer. E em Portugal como se de repente descobríssemos formas de crescer que não aquelas que tão bem conhecemos por conta do dinheiro dos outros e do egoísta comprometimento do bem estar futuro. Fala-se como se fosse já esquecido o regabofe doentio de ilusão que teve como principal expoente Sócrates e o seu egocentrismo delirante e desinteresse pelo futuro dos seus concidadãos.

Há até quem diga que temos de romper com a troika, só porque nos apetece, e porque temos saudades de construir os fontanários e festas com o dinheiro daqueles a quem queremos depois dizer: não pagámos! Depois da descoberta do quão irresponsavelmente fomos governados alguns querem passar, à boa maneira portuguesa, para a bonança antecipada e um desejo profundo de relaxe nas contas públicas. Como afinal não morremos, vamos então voltar ao mesmo.

Pormos as nossas contas em ordem não será apenas uma questão de respeito pelos outros, é, fundamentalmente, uma questão de respeito por nós próprios, de resgatar esse sentimento tão esquecido: a honra!

 

Mas vai havendo entretanto números positivos. Já repararam na forte queda do preço dos medicamentos, na prescrição acentuada de genéricos, nas regras apertadas para as margens de lucro da indústria farmacêutica?

Esse trabalho está a ser feito, sem alarido, pelo ministro da saúde. A sua cara de mal disposto não ajuda, o facto de não ter nenhuma central de propaganda a trabalhar para ele também não, mas a verdade é que no setor da saúde está a ser realizada uma reforma importante e necessária. E ele prefere a descrição, prefere não se pavonear, o que, diga-se, só atesta a sua determinação.

 

Publicado in Comércio de Guimarães

Imagem Série de Circo   José de Guimarães

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