Os corações da cidade

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Nascer em Guimarães é de há muito tempo algo que supera um simples milagre biológico, para quem nasce e para quem faz nascer. A história deste particular espaço físico, o amor tantas vezes misterioso que os antepassados deixam aos descendentes, obriga os vimaranenses desde muito novos a sentirem a sua naturalidade como uma ventura e não como um acaso. O mesmo também se passa aliás com quem escolhe Guimarães para viver e enobrece e alarga o conceito de vimaranense.

Tal orgulho manifesta-se de forma mais intensa quando estamos fora de Guimarães. Tudo se exagera e o orgulho na cidade é ostensivamente exibido à mais prosaica oportunidade. Estes exageros de sentimento espantam a maior parte daqueles que nos cercam e que têm uma relação mais vulgar e mais utilitária com as suas origens. A uns espanta, a outros irrita. Mas a nossa origem fica marcada em todos nós, mesmo quando a cidade nos maça. E essa invulgaridade marca-nos e define-nos.

Não deixa mesmo assim de ser espantoso a adesão entusiasta dos vimaranenses aos seus símbolos. O mais recente episódio é o da interpretação criativa do logótipo da Capital Europeia da Cultura (CEC) que nas lojas, nas escolas e noutras instituições foi feita por centenas, senão mesmo milhares, de vimaranenses. O coração amuralhado da CEC foi interpretado, com maior ou menor brilhantismo, com menor ou maior visibilidade, mas com indomável entusiasmo pelos vimaranenses. E isso só poderia acontecer aqui, numa CEC que se distingue precisamente pelo envolvimento da população, numa terra que mesmo longe da pujança económica que há décadas atrás nos caracterizava mantém o porte altivo.

A Muralha, associação de Guimarães para defesa do património apresenta este ano, no Pátio da Santa Casa da Misericórdia, Os Corações da Cidade, procurando materializar nessa exposição e na seleção que lá é feita, o entusiasmo que levou à construção criativa de um mosaico imenso e diverso de corações. A exposição fotográfica seleciona corações sem o objetivo de os valorar, não seria próprio nem justo. A exposição aumenta-os numa lona gigante para os libertar do arrebatamento que os moldou.

A entrada nesta exposição integrada nas Gualterianas é livre, pode ser vista desde a manhã até ao fim da tarde, e permite descobrir ou redescobrir o magnífico pátio da Misericórdia, ao lado da Igreja com o mesmo nome, no antigo largo de João Franco.

Na generosa programação musical destes meses de Verão, por entre o virtuosismo de Dee Dee Bridgewater e a competência de Pat Metheny, ambos na Plataforma das Artes, outros dois espetáculos encheram-me as medidas. Um deles, fruto do casamento entre a sensibilidade do Cineclube de Guimarães e o virtuosismo da Banda de Pevidém, juntou a música com o cinema: uma parceria vencedora feita com a prata da casa que tem mantido a cultura de Guimarães viva muito aquém da CEC e que irá muito para lá desta. Chegou a ser comovente ver as imagens de grandes filmes e a música que certamente muito trabalho deu aos músicos ser libertada na Praça da Oliveira. Um pequeno grande gesto prendeu-me a atenção: o maestro Vasco Faria pediu para retirar o palanque de onde dirigia a banda para que a sua sombra não interferisse com a projeção das imagens. Não seria necessário, mas o respeito pela imagem enobreceu a música e os seus executantes. Um outro maravilhoso concerto encheu o Vila Flor com a Orquestra Chinesa de Macau que fundiu a cultura chinesa com a portuguesa. Ouvir a guitarra de Carlos Paredes nas cordas de um liuqin é algo que perdurará na minha memória, pelo menos tanto tempo como a da magnífica voz de Carlos do Carmo flutuando na música da competente orquestra chinesa. E se as medalhas nos Jogos Olímpicos não parecem querer brindar, este ano, esta pátria milenar, que ela perdure magnífica nas culturas que abraçou ao longo da sua existência.

É bom que o nosso coração futebolístico esteja preparado para sofrer, compreendendo e apoiando esta equipa do Vitória. É possível que este ano as coisas não corram tão bem como o coração vitoriano deseja. Mas o banho de realidade que agora parece ser iniciado necessita da nossa paciência e apoio. Quanto mais não seja para nos libertar do mau-olhado e da sanha raivosa daqueles que sempre nos invejaram a dedicação.

Foto_Ricardo Leite

Publicado_O Comércio de Guimarães

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