Afinal era desta
Às tantas tudo isto esteve sempre escrito e nós não sabíamos de nada.
Às tantas alguém se
entreteve a pôr-nos à prova durante décadas para saber se realmente merecíamos
ser vitorianos. Às tantas todo este sofrimento teve o propósito de nos criar a ansiedade
necessária para que um dia o coração nos saltasse do peito e estalasse,
impecável, num fogo de artifício coletivo. Às tantas só nós é que não sabíamos
do propósito, e sofremos a não conquista da taça, ano após ano, feitos tolos na
ignorância de um destino já traçado.
O Deus de quem toda a gente
reclama a linhagem ou outros, mais atrevidos, a preferência, decidiu afinal
brincar connosco. Fez do futebol e do Vitória em concreto a sua distração
particular, quis ver até onde é que resistiríamos Quis afinal saber se os
miúdos que fomos não sucumbiriam às tentações de torcer pelos clubes de que
sempre se fala, dos clubes que ganham, dos clubes que distribuem as suas fartas
dúzias de comentadores apopléticos pelas rádios, televisões e jornais. Quis
saber se resistiríamos ao ulular dos estádios que enfrentamos fora de Guimarães,
sem vacilar. Quis saber se nos manteríamos inamovíveis perante a humilhação da
segunda divisão, se as lágrimas choradas no momento não iriam secar e fazer
secar a paixão. Quis saber se o gozo que tivemos nas nossas grandes equipas -
que nos arrastaram pelas estradas de Portugal durante décadas - conseguiria
destruir a nossa resistência ao mau futebol que também por vezes acolhemos.
Quis saber se todo o orgulho na terra e no clube – motivo superlativo de inveja
para gente que não resiste ao sofrimento, como nós, sem recorrer a anestesias
alheias – era verdadeiro e sólido.
E se o quis saber assim o
soube. Então talvez cansado, mas interiormente satisfeito pela nossa heroica
resiliência, chamou o destino e simplesmente deu-nos a taça … não valeria a
pena torturar-nos mais … nós merecíamo-la desde há muito muito tempo.
E ao olhar o Jamor percebemos que a brincadeira do destino não valeria
mais a pena. Era só olhar e ver a imensidão de jovens vitorianos, a sua fé
inabalável e a sua confiança no futuro do Vitória. Ao vê-los era fácil perceber
que a paixão iria continuar acesa e firme mesmo que perdêssemos a final que não
queríamos de forma alguma perder novamente. O sofrimento envolveu-nos mais ao
longo destes anos e forjou-nos um caráter que hoje todos reconhecem, a começar
pelos técnicos e jogadores que por aqui passam. O destinou exagerou-se em nós.
Fez-nos passar por provas a mais; provavelmente fez o mesmo a outros mas nós
resistimos. Não gostámos da brincadeira mas percebemos que tal devaneio divino
nos tornou inquebrantáveis.
A ironia da coisa foi tudo isto ter acontecido exatamente no ano em que,
do que me recordo, mais perto estivemos de implodir por via da
irresponsabilidade de quem nos fez chegar até esta miserável situação fiscal e
económica e sobre a qual não se pode continuar a “assobiar para o ar”. Não
bastasse o facto de toda a gente nos apontar o dedo, acresceu a vergonha de,
como adeptos, assistirmos a atletas profissionais mendigarem aquilo que o clube
assumiu de livre vontade perante eles, no futebol, no basquete ou no voleibol que
têm engrandecido de forma exemplar o nome do Vitória. A grande maioria dos
atletas conseguiu ter particular dignidade na situação de vergonha que a atual
direção procurou combater falando finalmente a verdade. A situação, sem grandes
escândalos na praça pública, acabou mesmo assim por ser conhecida, com
desagrado e incómodo, por todos.
O grupo de jovens que
aguentou de forma estoica essas mesmas dificuldades só poderia ganhar-nos tão
almejado troféu. Eram melhores jogadores que os do Benfica? Claro que não.
Tiveram as mesmas condições de tranquilidade e segurança financeira do que a
armada internacional que joga no Benfica? Nem pensar. Foram mimados pela
imprensa? Longe disso, sempre a trocar-lhes os nomes. Então o que fez a
diferença? O caráter, a vontade, a comunhão com os adeptos, este tonto
sentimento de pertença revestido a fé que nos moveu e move, em Guimarães ou em
qualquer parte do mundo onde haja um vitoriano. Quis o destino que o mago que apurou
a fórmula fosse mais um vitoriano, do Ribatejo, com o premonitório apelido de
Vitória.
Foto de Miguel Oliveira. O Miguel Oliveira foi um dos fotógrafos convidados para a exposição que a Muralha, o Conselho Vitoriano e o Cineclube irão organizar sobre os adeptos do Vitória, em data e local a anunciar brevemente, e que contará, entre outros, com o apoio da Capital Europeia do Desporto e da Oficina.
Artigo publicado n´O Comércio de Guimarães
Artigo publicado n´O Comércio de Guimarães
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