A greve - uma questão de desconfiança






Em 20 anos de serviço enquanto professor raramente recorri ao meu direito à greve. Por defeito, ou por feitio, sempre me senti desconfortável enquanto educador ao exigir aos meus alunos a sua dedicação ao estudo e depois faltar, mesmo que esporadicamente, em relação aos meus deveres para com eles.  No entanto nunca critiquei quem agiu de modo diverso do meu pois, acima de tudo, acredito nos valores de um Estado democrático e na importância que eles têm na nossa civilização ocidental. Os valores em que a Europa se funda hoje, malgrado a situação de indefinição que vivemos no seio da União, não caíram do céu nem resultaram de delírios políticos ocasionais, antes foram construídos com muito sangue e muito sofrimento pelos povos europeus, ao longo de séculos. O direito à greve resulta desses valores constitucionalmente consagrados em democracia. A greve pode ser criticada, mas o direito a ela é inalienável.
A questão que agora se colocou a mim e aos meus colegas professores, é a de dar uma resposta afirmativa a uma questão fundamental ao país e que é a qualidade do ensino público, com todas as implicações que tal resposta tem ao nível do futuro de Portugal. O estado a que chegamos enquanto sociedade, por motivos e com responsabilidades que não me atrevo aqui a tentar analisar, criou um estado de ansiedade e incerteza nos portugueses que se agrava pelo descontrolo político visível em muitos daqueles que nos governam.  O Senhor Ministro da Educação é, infelizmente, um desses exemplos, o que me surpreendeu face à imagem dele tinha.



Qualquer português mais atento já percebeu que a greve dos professores e, fundamentalmente, as consequências da greve nos alunos e nas famílias é um assunto sério e fraturante. Como acontece nestas situações a retórica passa com facilidade a demagogia. De um lado e de outro.
Os professores aguentaram, como outras classes profissionais, uma degradação acelerada das suas condições profissionais ao longo da última meia década com o esforço e o brio profissional suficiente que não puseram em causa a qualidade do ensino público. Pelo contrário, recentes indicadores internacionais como o TIMSS (Trends in International Mathematics and Science Study) ou o PIRLS (Progress in International Reading Literacy Study), dão nota de progressos claros dos nossos alunos. Isto tudo num contexto ainda muito deficitário do nosso sistema de ensino que até 2011 conseguiu qualificar apenas 49,6% dos jovens entre os 20-24 anos com o 12ºano, enquanto a média da União Europeia é de 77,9%, e os objetivos traçados para o espaço comunitário para 2010 eram de 85%. Os professores aguentaram, num contexto de  dificuldades do país e de compromissos internacionais exigentíssimos, uma quebra de salários violenta, o congelamento abusivo das suas carreiras, o aumento significativo de alunos nas suas turmas, um aumento do seu número total de alunos, a patética e confusa avaliação, os ajuntamentos irracionais de escolas e a consequente dificuldade de organização dessas mesmas escolas e de acompanhamento do seu funcionamento, a sua perda de representatividade em órgão centrais das escolas. O que os professores não aguentaram foi o ataque à sua dignidade profissional e o maquiavélico processo de desgaste da sua imagem no tempo da Ministra Maria de Lurdes Rodrigues. O que os professores não aguentam hoje é a indefinição alimentada por perspetivas ora negadas ora reafirmadas. Não aguentam preparar, apesar de tudo aquilo que já perderam, um novo ano letivo com novas regras irracionais e penalizadoras do ensino. Não aguentam que sobre eles se roguem as dez pragas bíblicas para mais à frente dizerem que afinal serão só três ou quatro. Não aguentam que se lance na praça pública um anátema sobre eles, sobre a sua situação profissional, que se ameace a necessária estabilidade para que mais à frente se recue, e depois de recuar se chegue a outubro e face à situação do país seja afinal para cumprir o tal propósito que durante meses se jogou nos jornais. É absolutamente insustentável ficar passivo perante este jogo, perante este propósito tático que põe em causa aquilo que todos consideram fundamental e decisivo para o futuro do país – a educação, e em particular a capacidade e qualidade da escola pública – mas que é frequentemente o cordeiro que prontamente se sacrifica no altar das dificuldades.

Sou militante do PSD e penso continuar a sê-lo durante muito tempo. Sempre achei que a política partidária é um pilar essencial da democracia e desempenhei no meu partido um conjunto de cargos com responsabilidade. Hoje mais afastado da política partidária ativa mantenho-me atento, crítico e colaborante em alguns assuntos que são para mim importantes. Este assunto é-o e não deixarei de vincar a minha opinião. Não vou rasgar agora as vestes partidárias, nem engrossar de forma derrotista as fileiras dos que demonizam a política.

Vou fazer greve na segunda-feira, apesar dos prejuízos que possa causar aos alunos que me esforcei por ensinar ao longo do ano, porque acredito que a educação merece outro tratamento, outra consideração, e uma estabilidade que permita que mesmo com os poucos recursos de que dispomos enquanto país nos continue a aproximar dos níveis de educação dos países mais desenvolvidos e não nos remeta para um sistema que degrade o ensino público e a sua importância no desenvolvimento e futuro do país.
Todas as minhas filhas estão no ensino público e, cada uma no seu nível, têm sido exemplarmente acompanhadas por colegas de profissão. Devo isso ao meu país, ao brio dos professores e aos responsáveis políticos que perceberam a importância da educação. E gostaria acima de tudo que eu, os meus colegas, as minhas filhas, os meus alunos, possam viver e melhorar com a Educação Pública e não, meramente, sobreviver a ela.


Foto: How green is my valley. John Ford. 1941.

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