Os saldos
“(...) se
queremos tirar do atoleiro em que está uma geração inteira, de gente
potencialmente digna de aproveitamento, temos que tomar a educação não como uma
verba a mais, mas como um princípio de vida, e uma sensibilidade pátria.”
Agustina Bessa-Luís. Dicionário Imperfeito. 2008.
Das coisas que eu não percebo
há uma que me dá uma angústia especial: os saldos. Mas das coisas que eu não
entendo essa será porventura a mais acessível ao meu entendimento. Apesar disso
a zona do meu córtex cerebral que deveria processar a informação relativa ao
assunto em causa permanece com a atividade característica de um pedaço de
betão. Desconheço ainda hoje quais as épocas de saldos, qual a lógica a que a
elas preside, qual a dimensão e significância percentual da coisa.
Admito que ter sido criado
por um magnífico trio de tias comerciantes que nunca promoveram um saldo na
vida pode ter ajudado à minha presente desqualificação. Contudo a lógica
consumista das últimas décadas deveria ter-me dado ferramentas para não me
sentir perdido, e quantas vezes intimidado, em época de saldos.
Ainda a passada semana
precisei de uma camisa e entrei numa loja em saldos. A primeira coisa que se
nota é a maior afluência de clientes e aquela sensação desconfortável de
transporte público apinhado. Como eu permaneço a destempo, apesar da idade, com
os ensinamentos que me deixaram na infância, para dar lugar aos mais velhos e
às senhoras nos autocarros, acabo por me deixar ludibriar com alguma facilidade
no processo implacável dos saldos. De repente a camisa que escolhi está nas
mãos de uma senhora. Pousei-a apenas uns breves segundos enquanto, cheio de
vontade em aprender, dava uma vista de olhos noutros artigos. E lá vai a
camisa, desabotoada e enorme, nas mãos de uma senhora pequenina que parece ter
ganho a loteria nacional. Só me resta adaptar e esperar que ela largue a presa
e eu solte a hiena que há em mim atacando no momento certo.
Se a minha infância não me
preparou para a selva dos saldos o meu presente deveria tê-lo feito. Tenho uma
mulher que sente no ar a vibração dos saldos, à imagem da volúpia animada do
cheiro de comida no cinema de animação. Já assisti à sua chegada à loja pouco
depois dos cartazes de saldos terem sido afixados. Às vezes fico com a sensação
que a minha mulher sabe dos saldos antes das funcionárias e, eventualmente,
antes dos concessionários. É possível que as mulheres, algumas mulheres como a
minha, tenham não só um sexto, mas também um sétimo sentido para estas coisas
de compras e saldos. Nunca a acompanho nas gloriosas jornadas dos saldos porque
não aguento a pressão mas também, suponho, porque iria atrapalhar os movimentos
felinos de uma mulher talhada para a oportunidade, que chega a casa estourada
mas feliz imersa nos despojos de guerra. A minha mulher é uma profissional que
já não se contenta com o saldo vulgar mas vai ao limite da possibilidade máxima
do saldo, como um mergulhador que entra em apneia para além das suas
possibilidades físicas. E se eu nunca sei o meu número de calças ou de camisa,
hesitação fatal no mundo predatório dos saldos, ela consegue saber o de todos e
para todos trazer qualquer coisa arrancada das profundezas do preço
irresistível. Para se ser bom em saldos é importante ter técnica e intuição e
estar no topo, como os bons profissionais do desporto, das capacidades físicas
e psicológicas. Eu não tenho, reconheço com alguma mágoa, nenhuma dessas
qualidades.
A educação está em saldo há
tempo demais neste glorioso país que, sem riquezas naturais que o salvem,
conseguiu por breves momentos históricos estar à frente quando apostou no
conhecimento e no saber. Já se fizeram os saldos dos 20%, já lá vão os dos 50%,
e este Governo apostou agora nos 80%. É
o arrumar da coleção sem perspetivas de uma nova. É a liquidação total da loja
e dos funcionários que, bravamente, se recusaram por estes dias a fechá-la. E
apesar de alguns clientes vociferarem, mais por patética ignorância do que por
maldade ou recalcamento, é possível ainda travar as consequências da loja vazia
e sem futuro. A começar por mim, militante do PSD, que não se revê na deriva
ideológica de um partido fundado noutros valores e com uma gerência desadequada
aos seus princípios e à sua história. A estes saldos seguramente não irei, nem
participarei com o meu silêncio.
Publicado in O Comércio de Guimarães
Fotos Alexandre Coelho Lima
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