Paixão

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O beijo Gustav Klimt (1908-09)

A paixão é uma palavra demasiadamente feia para encerrar tão forte e importante significado. É uma palavra com sonoridade de caixão ou puxão, ambas também horríveis. Uma língua tão bonita quanto a língua portuguesa não teve aqui a arte de arredondar delicadamente o termo latino passio para a rendilhada passione como fizeram os italianos, ou a delicada passion dos franceses. Já os espanhóis carregaram-na de intensidade na pásion, como é aliás seu hábito.

Não tivemos em conta a paixão dos gregos (pathe), que era o de sentir, seja lá o que fosse, e seguimos estritamente a passio latina que quer dizer sofrimento. Daí a aspereza da palavra.

No entanto enquanto povo latino que somos nunca consideramos a paixão como um mal. O sofrimento que ela induz é bom, é necessário. Achamos nós ser uma ventura imensa apaixonarmo-nos, mesmo que isso implique sofrer. Mesmo que isso nos desassossegue permanentemente. Tenho dúvidas até que se possa arrumar a paixão na classe dos sentimentos: o sentimento é uma consciência íntima, enquanto a paixão é uma inconsciência declarada.

A paixão tem prazo de validade. Se chegarmos a uma altura adiantada da nossa vida e nunca nos tivermos verdadeiramente apaixonado por ninguém, é melhor esquecer. O cinismo que se ganha forçadamente com a idade impede-nos de sentir a paixão. Torna-nos impermeáveis à loucura. Um afeto tão violentamente arrebatador exige uma perfeita forma física e uma imperfeição nas regras de comportamento. É uma pena, eu sei, mas é mesmo assim. A paixão tendo mais de doença – uma doença boa – que de sentimento. A paixão é sarampo, pois como o sarampo só se apanha uma vez. Fica-se imune aos restantes ataques. Condescendo aqui um pouco para duas, três em casos raros de grandes corações, mais do que isso não é paixão o que dizem sentir. É amor piegas. Serão afetos talvez, coisas quantificáveis portanto, nada mais que isso.

 

E se somos daqueles cuja sorte ou arte nos permite hoje trocar olhares com a nossa paixão, fiquemos aí. Pois passada a borrasca caótica da paixão, sente-se ainda, cuidadosamente, por baixo da aparência mundana, com várias mãos de tempo, o sorriso, o olhar, o recanto de pele, a expressão nos lábios que um dia julgámos que nos matariam … só de os olhar.

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