A tentação italiana

0000101066

O artigo de opinião de Pedro Lomba, publicado no i, hoje:

José Sócrates já foi comparado com Blair por causa da sua terceira via. Já foi comparado com Zapatero pelo vanguardismo nos costumes. Mas hoje é para mim claro que a comparação não é entre Sócrates e qualquer dos anteriores. O paralelo a fazer é entre Sócrates e Berlusconi. E é inteiramente necessário e apropriado que o façamos, agora que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça declarou nulas as escutas das conversas entre Armando Vara e José Sócrates no processo Face Oculta. Vou explicar porquê.
Em Julho de 2008 Berlusconi conseguiu a aprovação da Lei Alfano, com a qual, entre outras prerrogativas, obteve imunidade temporária nos processos em que era visado antes de ter iniciado funções. A Lei Alfano foi aquilo a que nós, juristas, costumamos chamar lei-medida, pensada especificamente para proteger Berlusconi. Lembro- -me que logo após a publicação da lei a associação de constitucionalistas italianos escreveu um protesto no "La Repubblica": "Em defesa da Constituição." O argumento principal desses juristas era simples: a lei violava o princípio da igualdade dos cidadãos perante a justiça. Simples, claro, irrefutável. Tanto que há um mês o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade da Lei Alfano precisamente com esse fundamento.
Avancemos agora para José Sócrates. A norma que atribui ao presidente do Supremo o poder de autorizar a intercepção, a transcrição ou a gravação de escutas em que intervenha o primeiro- -ministro constitui uma imunidade compreensível numa democracia. A regra em causa tem como funções evitar perseguições políticas, proteger a liberdade dos governantes, limitando o universo de pessoas que podem abrir inquéritos directos a altas figuras do Estado, entre as quais o primeiro-ministro.
Mas é preciso repetir que nenhum desses valores foi posto em perigo no caso Face Oculta. As escutas em que José Sócrates interveio foram autorizadas pelo juiz competente e levadas a cabo num inquérito em que o visado se chama Armando Vara. Sócrates foi apenas um interveniente incidental nessas escutas. Tudo aquilo que terá dito de criminalmente relevante obedece ao chamado regime dos "conhecimentos fortuitos", que a lei hoje regula legitimando o seu aproveitamento noutro processo. É o que dizem os penalistas. E sempre foi essa a posição do Supremo Tribunal, que em acórdãos firmou o princípio de que os conhecimentos fortuitos, obtidos numa escuta válida podem e devem ser aproveitados "se tiverem interesse para a descoberta da verdade ou para a prova no processo para onde são transportados" (sic).
Não conheço, como toda a gente, o conteúdo do despacho em que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça declarou nulas as escutas. No entanto, com esta decisão, Noronha do Nascimento não se limitou de lado o regime dos "conhecimentos fortuitos"; conferiu a José Sócrates um privilégio único na justiça portuguesa, o de não estar abrangido por aquele regime só por ser primeiro-ministro. Esta decisão é uma violação do princípio da igualdade dos cidadãos perante a justiça.

Foto: Filipe Casaca (i)

Comentários

Mensagens populares