Fio de jogo

E aí está o Mundial. Finalmente.
A sua cadência quadrienal dá-lhe a magia das coisas únicas e irrepetíveis. É de quatro em quatro anos, nós sabemos, mas a sua magia dá-lhe a urgência de um cometa que só passa de 100 em 100 anos. Não se pode perder pitada: é futebol e ao mais alto nível.

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Por isso nada de concessões. Vivemos numa época do politicamente correcto e o mulherio insensível é capaz de tudo. Estás a ver futebol outra vez? Mas este jogo nem é de Portugal? OK hoje vês este jogo, mas amanhã vejo eu o que quiser, está bem? Não me digas que vais ver os resumos? Vamos ser bombardeados com balelas deste género, tenho a certeza. Mas há que manter uma firmeza calma e sobretudo a convicção da importância deste Mundial. O futebol não se explica nem permite que se tergiverse. Ama-se e pronto.
Não vamos permitir sentimentos de culpa por (alegadamente) os homens dominarem as mulheres há séculos. Além de ser uma mentira é jogo baixo e tem a mesma consistência retórica da culpabilização tão em voga de povos e religiões por factos cometidos há séculos atrás. É uma espertice, um golpe baixo para nos desviarem os olhos do cometa.
A paixão pelo futebol nasce no berço e toma forma nos jogos de criança. Não é coisa que se estude, mas antes algo que se vive e se constrói ao longo dos anos. Com maior ou menor jeito passámos horas após horas, dias após dias, anos após anos, a chutar aquela coisa redonda, a amargar derrotas e a vibrar com as vitórias da nossa equipa de rua. Apanhámos muita porradinha quando decidimos chutar aquela bola com os sapatos de domingo ou rasgámos as calças da escola. Mas o terror que a consciência nos impingia só vinha depois do jogo terminado, pois até lá o mundo resumia-se a uma baliza de futebol feita de paus ou pedras. Foi por cima, dizia-se, imaginando barras invisíveis. Bateu no poste, afirmava-se convictamente, para manter a baliza inviolável. A escola sempre foi (não sei se continuará a ser) um intervalo nos jogos da rapaziada, servia para a gente tomar fôlego. E quando vinham as férias era de manhã até que o sol deixasse, e mesmo assim depois dos jogos internacionais na RTP, a preto e branco, tinha que se fazer um joguinho em que se aplicasse as fintas do Cruijff ou os passes do Beckenbauer, não nos fossemos esquecer das lições que tão atentamente visionáramos.
Como se explica isto a quem nunca jogou futebol? Não se explica, pois a resposta é tão complicada como explicar porque é que se calça 42.


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Numa época em que toda a gente tem direito à diferença deixem os meninos grandes e os meninos pequenos mergulhar no aparente desinteresse de um Eslováquia-Paraguai. O futebol tem a estranha tendência alquímica de transformar o nada em coisa de valor, como aquele famoso França-Kuwait, do Mundial de 1982, em que um príncipe desceu do camarote para anular o golo de Girésse validado minutos antes pelo árbitro da partida. Inesquecível.
Concedo no entanto, àquelas que conseguiram chegar ao fim desta crónica em jeito de manifesto, que não será compreensível que as inenarráveis reportagens das televisões nacionais sobre o corte de cabelo de Cristiano Ronaldo, o pequeno almoço de Bruno Alves, ou a insónia do Simãozinho, sejam consideradas na categoria de factos do Mundial. Isso não. Ver essas coisas desqualifica a paixão pelo futebol geneticamente construída ao longo dos anos.
Ora chega aí o comando se fazes o favor…

 

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Fotos_ramseymohsen_Kigaliwire in Flickr

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